sábado, 31 de dezembro de 2011

Juízo meu

Sei quanto vale a minha poesia:
vale oiro de muitíssimos quilates,
a palma disputando a muitos vates
em termos de cadência e melodia.

Cada soneto é uma sinfonia,
seja qual for o andamento dela,
quer gire à volta de filosofia
ou mais não seja que uma bagatela.

Ainda que espontâneos, os meus versos,
que passam para cima de três mil,
tratados são com pedra de esmeril

Somente os mando à vida quando vejo
que sob os requisitos mais diversos
exactamente estão... como desejo!

João de Castro Nunes

A cor do céu

O céu não é inutilmente azul:
se Deus assim o fez, foi certamente
para nos envolver de norte a sul
num halo de safira transparente.

Podia tê-lo feito de outra cor,
verde, cinzento, roxo ou encarnado,
mas ao fazê-lo azul o Criador
antes do mais em nós terá pensado.

Quis esconder-se por detrás do Sonho
que tem a mesma cor do firmamento,
a cor das poesias que componho.

Azul é a cor da condição divina,
a cor que mais nos fala ao sentimento
e mais que qualquer outra nos fascina!

João de Castro Nunes

A sua face

Fomos os dois a par envelhecendo
sem eu me aperceber concretamente,
porquanto para mim, na minha mente,
seu rosto sempre igual se foi mantendo.

Quando quero evocar a sua face,
aquela que me vem mais à lembrança
é,pois, a que possui mais semelhança
com a do ritual do nosso enlace.

Fotografada a tenho à cabeceira
e sobre a secretária, à minha beira,
como se nunca houvesse encanecido.

Por mim, continuando a envelhecer,
agora a sós, por ela falecer,
mais nova ainda a tenho no sentido!

João de Castro Nunes

Roseira brava

A minha poesia nada deve
a quem me antecedeu; brota de mim
como a roseira brava de jardim
que mão de pardineiro nunca teve.

Flui dos meus nervos postos à pressão
por uma espécie de necessidade
de revelando a minha intimidade
lhe conferir artística expressão.

Só que de longe, quase desde o berço,
afino pela lira do universo
meus versos sem qualquer similitude.

São como sons de breves sinfonias
tocadas em melódico alaúde
sem caso algum fazer de teorias!

João de Castro Nunes

SABEDORIA ORIENTAL

(Parábola da suspeição)

Tendo um dia perdido o seu machado,
um certo camponês logo pensou
no filho do vizinho, a quem achou
com todo o viso de lho ter roubado.

Bastava olhar para ele... para ver
que tinha mesmo cara de ladrão,
passando a espiá-lo na intenção
de eventualmente o vir a surpreender.

Acontece, porém, que a dada altura,
por mero acaso, em meio da verdura
perdido o camponês o descobriu.

Caindo em si de súbito admitiu
que o filho do vizinho sugerido
até nem tinha... sombras de bandido!

João de Castro Nunes

Poética morada

Enquanto eu vivo for, todos os dias,
na igreja do convento franciscano
será rezada missa todo o ano
por alma tua, como tu querias.

Ao pé do cemitério onde descansas
e onde eu decerto ficarei também,
o conventinho está, donde provém
um místico arrulhar de pombas mansas.

Lá professou Fernando de Bulhões,
o nosso Santo António de Lisboa,
mas, em primeira mão, dos Olivais.

Vê lá tu, meu amor, que coisa boa
vai ser os dois ficarmos em covais
juntinhos escutando os seus sermões!

João de Castro Nunes

Saudade

Saudade é sida que se pega à gente
por mais que não se queira ou que se faça:
não se pode evitar ficar doente
por ser o mal maior da nossa raça.

Trazemos a moléstia nas entranhas
como se fosse um vírus insanável
que toma às vezes proporções estranhas
causando imensa dor, mas agradável.

"Delicioso pungir de acerbo espinho",
como um grande Poeta lhe chamou,
a todos nos atinge um bocadinho.

O mal consiste, convencido estou,
no termo em si, nessa palavra mista
que só na nossa língua se regista!

João de Castro Nunes

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Suprema decisão

O Duque de Gandía, quando viu
a sua Imperatriz amortalhada,
sentiu, caindo em si, já não ser nada
aquela a quem tão próximo serviu.

De tão formosa que ela foi, de facto,
e tão distinta, poderosa, agora
não era mais, a Altíssima Senhora,
que um fétido cadáver putrefacto.

D. Francisco de Borja, o camareiro,
com sua esposa toma a decisão
de cada qual entrar para um mosteiro.

Às pompas cortesãs dizendo adeus,
a mais ninguém que morra servirão:
"Daqui para diante... apenas Deus"!

João de Castro Nunes

Rainha... é rainha!

Ao dar à luz na corte castelhana,
D Isabel, Imperatriz de Espanha,
mulher de Carlos Quinto, diz-de dela
que teve uma atitude assaz estranha.

A fim de que ninguém lhe visse o rosto
angustiado, tenso e ofegante
e pela acção do parto descomposto,
mandou que lho tapassem nesse instante.

Ao chegar o momento decisivo
em que a parteira, como lenitivo,
lhe disse que era bom que ela gritasse,

a Imperatriz, sem descobrir a face,
lhe retorquiu que, mesmo quando aflita,
uma Rainha morre, mas não grita!

João de Castro Nunes

Isabel de Portugal

No Prado, em plena via Castelhana,
encontra-se, em itálica pintura,
famosa pela sua formosura
de toda a Espanha a lusa soberana.

O que, contrariamente à fúria hispana,
logo nos prende, ao ver sua figura,
é aquela repousada compostura
peculiar à gente lusitana.

Entre milhentos rostos de princesas
da mais alta linhagem europeia,
outra nenhuma tanto nos enleia.

Estupefacto quando a conheceu,
ante ela Carlos Quinto se rendeu
e acima a pôs de todas as Altezas!

João de Castro Nunes

Gostosa dor

Um fogo interior, vivo e ardente,
chamado amor, que escalda mas não dói,
um fogo que queimando não destrói,
tem-me feito sofrer... gostosamente.

Camoneadamente me expressando,
apraz-me registar o contra-senso
que em mim se dá também, segundo penso,
de sofrendo no fundo estar gostando.

Por isso, meu amor, não faças caso
de ser a minha dor tanto maior
quanto maior o amor em que me abraso.

Se por amor sofrer nunca é demais,
deixa-me então penar cada vez mais,
convertendo em prazer a minha dor!

João de Castro Nunes

Amar... por amar

O puro amor que Te dedico e tenho
sem nada em troca Te pedir, Senhor!
posso jurar-Te pelo santo lenho
que na verdade é tão-somente amor!

Quando Te rezo à hora de deitar
e tendo ocasião durante o dia
é como se estivesse, ante o altar,
a conversar contigo em poesia.

Enquanto não T'o digo frente a frente,
olhos nos olhos, vendo a tua cara,
permite que entretanto, embora ausente,

quebrando a condição que nos separa,
T'o vá dizendo antecipadamente
por esta forma para mim tão cara!

João de Castro Nunes

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Permanência

Partiste, amor, mas não te foste embora,
permanecendo sempre ao pé de mim;
sempre senti, por esse mundo fora,
teus passos de veludo e de cetim!

Sempre comigo te sentaste à mesa
para me acompanhar nas refeições,
compartilhando a meias a despesa,
nunca questão fazendo dos tostões!

No nosso leito de perfil antigo
nunca deixaste de dormir comigo
um sono repousante em paz com Deus!

Nem sempre um lenço, amor, dizendo adeus
implica a ideia de separação
nos domínios que são do coração!

João de Castro Nunes

A jóia do carrasco

Senhora dona morte, quando for
a altura de eu subir ao cadafalso
de tronco nu, sem túnica, descalço,
dá-me um golpe certeiro com vigor!

Da minha parte, em reciprocidade,
terei numa das mãos para te dar
pelo serviço que me irás prestar
uma jóia de grande qualidade.

É peça muito antiga que eu herdei
dos meus antepassados e guardei
para este fim, como é da tradição.

Apenas tens de proceder na altura
com muita agilidade e prontidão
por forma a eu tombar com compostura!

João de Castro Nunes

Sonata azul

Ouvidos ler ou lidos no papel,
os meus poemas na realidade
têm a cor, têm a tonalidade
dos olhos de David, rei de Israel.

Têm da turquesa a cor imaculada
peculiar da classe da nobreza,
a cor por excelencia que se preza
de ser da natureza a mais cotada.

Tanto na forma como no sentido,
passando pelo seu vocabulário,
dariam para forro de sacrário.

São castos, meu amor, como os teus olhos
de um verde-azul, suave, enternecido
capaz de em rosas transformar abrolhos!

João de Castro Nunes

Falar com rosas

Falar com rosas é falar com Deus
que nelas pôs a sua complacência,
sem precisão de O procurar nos céus
onde Ele tem a sua residência.

Nelas eu vejo a sua natureza
em toda a sua extrema perfeição,
deixando-me vencer pela certeza
de nelas eu ter Deus à minha mão.

Se Deus tem cheiro, como às vezes penso,
o mesmo deve ser que as rosas deitam,
mais apurado embora ou mais intenso.

Quando com Deus desejo conversar,
sirvo-me delas, que em botões enfeitam
as jarras "Vista Alegre" do meu lar!

João de Castro Nunes

Carta aos meus filhos

Prestes a ir-me embora, filhos meus,
para encontrar-me com a vossa Mãe
que foi à minha frente ter com Deus,
isto vos digo para vosso bem:

amai tudo o que é bom na natureza,
tudo o que tem valor e qualidade,
nunca afirmando terdes a certeza
pois que ninguém é dono da verdade;

vossos pontos de vista defendei
com vigor e coragem, muito embora
sendo capazes de dizer: "Não sei!";

mas sobretudo, pela vida fora,
nunca façais papel de delatores
pelo que toca aos livre-pensadores!

João de Castro Nunes

LIBERDADE

Eu quero a liberdade, a verdadeira,
escrita com maiúscula na base
dos monumentos sem nenhuma frase
que a desvirtue por qualquer maneira.

Eu quer a liberdade na soleira
da minha porta para quando entrar
saber que ela se encontra no meu lar
sem trela, sem açaimo e sem coleira.

Eu quero a liberdade como Deus
ao ser humano a deu quando o criou
para O amar na vastidão dos céus.

Eu quero a liberdade sem mais nada
exactamente assim como brotou
para entre todos nós ser partilhada!

João de Castro Nunes

Amor sacramentado

Amar assim como eu te amei a ti,
não há na história antiga ou actual,
não houve, não existe, nunca vi
em toda a minha vida um caso igual.

A maioria ou são imaginários,
produto de exaltada fantasia,
ou não passam de mitos literários
que já não têm lugar nos nossos dias.

O meu amor por ti, sacramentado,
feliz, constante, firme como a hera,
foi tudo menos obra de quimera.

Por Deus seguramente abençoado,
nos filhos que nos deu vai perdurar,
não mais se desfazendo o nosso lar!

João de Castro Nunes

"A que vens, pá?"

Antes da Páscoa, estavam reunidos
à volta de Jesus, no meio deles,
alguns dos seus discípulos, aqueles
mais chegados a si, desprevenidos.

Eis quando se aproxima, acompanhado
de um bando de soldados, sorrateiro,
Judas Iscariotes, disfarçado
de inofensivo e tímido cordeiro.

Dirigindo-se ao Mestre, que o aguardava,
a face lhe beijou, conforme estava
determinado pelos fariseus.

Jesus, os olhos levantando aos céus,
outra coisa não fez do que dizer:
"A que vens, pá?!" - O resto está-se a ver.

João de Castro Nunes

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Amor integral

O meu amor não é um amor qualquer,
como ao longo dos tempos foi cantado
pelos grandes poetas do passado,
visando o rosto apenas da mulher.

Também será, sem dúvida nenhuma,
como é perfeitamente natural:
amor que envelhecendo o visual
aos poucos vai morrendo como espuma.

O meu amor, não sei como dizê-lo,
além de intemporal é, mais que tudo,
incandescente como o sete-estrelo.

É integral e envolvente, a par
do amor dos filhos, tendo por escudo
as ancestrais paredes do meu lar!

João de Castro Nunes

Revivalismo

Sonetos, sim; voltemos aos sonetos,
bem feitos, musicais, harmoniosos,
fluentes, espontâneos, engenhosos,
ainda que os rotulem de obsoletos!

Já foram os poemas predilectos
para exprimir em versos primorosos
conceitos, sentimentos grandiosos
em duas quadras só mais dois tercetos.

Tornado ultimamente, sem motivo,
objecto de museu, na prateleira,
importa demonstrar que ainda está vivo.

Que mais não seja, em honra de Camões:
que volte a ser, de idêntica maneira,
o porta-voz das nossas emoções!

João de Castro Nunes

Sonetos meus

Sonetos mais perfeitos do que os meus
em parte alguma os há; são burilados
ao som dos violinos afinados
pelas estrelas a girar nos céus.

Não temo o seu confronto com quaisquer
poetas de maior notoriedade
quer na harmonia quer na qualidade
face à maneira minha de dizer.

São vários os motivos e sentidos,
mas sem dúvida alguma os preferidos
são desde logo os temas do lirismo.

Confesso que, apesar de naturais,
quase espontâneos, fáceis ou banais,
um laivo há neles de... preciosismo!

João de Castro Nunes

Sonhar em grande

Sonhar em grande, sempre mais acima,
nunca ficar pelo primeiro andar,
subir até os cumes alcançar
mesmo que a sua altura nos oprima!

Sonhar com a Mulher que nós pusemos
acima das estrelas, tão distante
que mesmo tendo-a frente a nós, diante,
é sempre aí que por sistema a vemos!

Sonhar mais alto ainda se possível,
sonhar co Deus, apenas atingível
pelos degraus sentimentais do Amor!

Santificar em sonho a Esposa amada
com Deus formando um só lá na morada
que aos eleitos reserva o Criador!

João de Castro Nunes

Sonhar não custa

De ser Poeta, sim, mas de verdade,
poeta do princípio até ao fim,
poeta dos poetas, era assim
que eu desejava ter a faculdade:

poeta por inteiro, sem mais nada
na vida porventura pretender
que inspirados poemas escrever
de mente limpa e alma acrisolada.

Ser o maior, acima de Camões,
andar na boca das populações,
ser lido nas escolas do país.

Sonhar não custa, como sempre fiz,
difícil é fazer das ilusões
aquilo que à nascença Deus não quis!

João de Castro Nunes

Rumor de búzios

Do mar tenho nas veias o sabor
acidulado e acre, o paladar
das algas e corais, cujo amargor
eu sinto no meu sangue circular.

Vive entranhado desde o berço em mim
o penetrante odor da maresia
que a par do verde aroma do alecrim
impregna toda a minha poesia.

Continuamente tenho nos ouvidos
o som do mar dos galeões perdidos,
como um rumor de búzios persistente.

Por herança talvez de algum parente,
um só momento não me sai da ideia
este eco de oceânica odisseia!

João de Castro Nunes

Renascer em cada dia

O dia de amanhã seja o começo
de uma nova existência sem lembrança
de funestos pesares, cujo preço
já com juros paguei, feita a cobrança!

A vida de raiz principiemos
em cada novo dia, na ilusão
de ser sempre o primeiro que vivemos
com redobrada força de emoção!

Por esta forma nunca se envelhece,
pois tudo aquilo que nos acontece
terá sempre o sabor da novidade.

Não conferindo aos anos importância,
a sensação vou tendo, nesta idade,
de ainda agora me encontrar na infância!

João de Castro Nunes

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Falar com Deus

Senhor! ai se eu soubesse em minha lira
dizer-te o que me vai no interior,
naturalmente, como quem respira,
sem ter de estar meus versos a compor;

ai se eu pudesse abrir-te o coração
em frases de cadências musicais,
exactamente como as tuas são,
fluentes, espontâneas, naturais;

só que eu, Senhor, temendo destoar
do modo que tu tens de te expressar,
há tanta coisa em mim que te não digo...

Se eu soubesse falar à tua moda.
havia de passar a vida toda
horas a fio a conversar contigo!

João de Castro Nunes